O nascimento da “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 135/2010) veio de uma ação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), fruto da Campanha da Fraternidade de 1996 que teve como tema “Fraternidade e Política”, e teve apoio de diversos setores da sociedade. Logo a ideia foi crescendo e a população foi tomando gosto pela proposta, levando a uma enorme pressão popular para que fosse aprovada a lei.
Ainda que fruto de um anseio popular, desde o início muitas discussões nasceram, em especial a questão da retroatividade da lei. Explico melhor.
O art. 5º da Constituição Federal prevê que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; (...)
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;
Traduzindo o que diz a Constituição: a lei não poderá criar punição a fatos ocorridos antes da sua promulgação.
Vamos a um exemplo: se for criada uma lei hoje dizendo que andar de camisa amarela é crime, isso só vale para quem usar esta camisa a partir de HOJE. Quem usou ontem não pode ser punido, pois não havia previsão legal que dissesse que é crime.
CAMISA AMARELA | |
ONTEM | HOJE |
Não tinha lei | Nova lei |
Não era crime | É crime |
Não pode ser punido | Quem usar a partir de hoje pode ser punido, mas não pode punir quem usou ontem |
E é aí que a coisa pega. Pela Lei da Ficha Limpa os políticos que se enquadrarem nos casos ali previstos não poderão disputar eleições por um certo período, independentemente de quando ocorreram tais situações. Ou seja, a lei decidiu punir quem usou a camisa amarela antes da norma existir.
Primeiro devo dizer que moralmente concordo com todas as previsões da lei. Não temos como negar a sua importância no processo eleitoral de hoje, diante de tanta gente malandragem que vemos por aí. MAAAASSSSS, como advogado fico muito preocupado.
No direito existe o princípio da segurança jurídica, que conforme o Prof. Fabrício Andrade se pode conceituar assim:
(...) A segurança jurídica é um direito fundamental do cidadão. Implica normalidade, estabilidade, proteção contra alterações bruscas numa realidade fático-jurídica. Significa a adoção pelo estado de comportamentos coerentes, estáveis, não contraditórios. É também, portanto, respeito a realidades consolidadas. (...) A segurança jurídica está igualmente no princípio da irretroatividade nas normas (art. 5º, XL, CF - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu). As leis, em regra, devem ter efeitos prospectivos - para o futuro. (...)
(grifo no original - Leia aqui)
No mundo jurídico isso é muito importante para definir direitos e deveres, para que possamos saber o que é ou não que podemos fazer a partir do momento que a lei entra em vigor.
Quando aparece uma nova lei que diz estabelece algo de forma contrária à Constituição Federal, ao se declarar que esta norma é constitucional estaremos criando precedentes perigosos, ainda mais quando se trata de motivação por pressão popular.
O STF não pode se pautar por pressão popular, pois a este cabe a guarda da Constituição Federal (art. 102, caput, da CF/88). Quando se aceita nova lei que contrarie (em parte ou em todo) a CF, estaremos abrindo uma brecha para que se adotem medidas malucas e a segurança jurídica vaia para o saco.
Vamos a um exemplo: façamos de conta que temos no Brasil uma pessoa como o vizinho Hugo Chavez, com discurso nacionalista, que vai combater a corrupção, etc. Este ser consegue chegar à presidência por imensa votação popular (algo em torno de 85% do votos), e quando é empossado defende uma caça a todo político corrupto no país (algo de enorme anseio popular), e resolve criar um tribunal de exceção (que é vedado pelo art. 5º, XXXVII, da CF/88) para julgar e condenar rápido os acusados. Vejam que estamos tratando de um governante com enorme apoio popular, e que defende algo de grande desejo da nação ... esta medida seria válida?
Bom, já temos um precedente de que o anseio popular autorizaria uma medida como esta, mesmo se houver previsão constitucional dizendo o contrário. Esta foi a preocupação dos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Cezar Peluso, e confesso que entendo da mesma forma.
Se pegarmos o voto do Min. Marco Aurélio, veremos que ele não entende que a Ficha Limpa fosse inconstitucional, mas diante de uma previsão da CF é que julgou que não se aplicaria aos casos anteriores à nova lei.
Assim, se manifestou o Min. Marco Aurélio: “Vamos consertar o Brasil de forma prospectiva, e não forma retroativa, sob pena de não termos mais segurança jurídica”.
Sei que alguns podem dizer que o STF não aceitaria absurdos como os que ocorreram (e ainda ocorrem) na Venezuela de Hugo Chavez, mas mesmo situações menores podem aparecer "em nome do anseio popular".
Vou dizer novamente: moralmente eu concordo com tudo que está previsto na Lei da Ficha Limpa, mas como advogado fico preocupado com as repercussões que esta decisão do STF pode dar.
Nos filmes da série Os Piratas do Caribe alguns piratas defendiam que o Código de Conduta seria apenas um referencial, e que não seria uma norma a ser seguida. Acredito que estamos correndo o risco de que isso ocorra com a nossa Constituição Federal, pois se a pressão popular continuar ditando qual deve ser a decisão a ser tomado pelo STF, ela não passará de um mero referencial.
Se isso ocorrer, não teremos mais segurança jurídica nenhuma no país, pois a lei pode se tornar apenas um referencial, e sua aplicação mudará de acordo com o desejo da maioria.
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Fica autorizada a reprodução integral deste post, desde que citada a fonte conforme texto a seguir:
BRANDALISE, André Luiz de Oliveira, O STF e a pressão popular, publicado em 23/03/12 no blog “André Brandalise” - http://alobrandalise.blogspot.com/2012/03/o-stf-e-pressao-popular.html
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