terça-feira, 5 de junho de 2012

A Comissão da Verdade e suas consequências


É muito fácil alguém como eu falar sobre o período da ditadura militar, sendo que não tive consequências diretas de tal período ... não tive parentes que sofreram retaliações do regime militar, e nem mesmo que tenham sofrido qualquer dano em razão de atos dos que se rebelavam contra o governo instituído. Mas sobre a situação legal envolvendo a Lei da Anistia eu acredito que tenho amplas condições de tecer algumas palavras.

Durante o período de governo comandado pelos militares tivemos diversos atos no mínimo vergonhosos: prisões sem motivação legal, torturas, assassinatos, atos terroristas, assaltos, tentativas de levante armado, sequestros, etc.. Tais situações foram realizadas pelos dois lados da moeda ... se de um lado havia a força armada do Estado, do outro estavam vários grupos, armados ou não, que lutavam contra o regime ditatorial.

Não vou aqui defender nenhum dos lados, pelo contrário, vejo que ambos exageraram na defesa de seus ideais. Assim como nada justifica as torturas e mortes causadas por agentes públicos, da mesma forma nada justifica os atos equivalentes da parte contrária.

Assim, deixo claro que não vou defender os torturadores do regime militar, mas acredito que possa ser chamado novamente de (tudo em letra maiúscula mesmo) "IMBECIL", "BABACA", "ABESTADO", "BANDIDO", "BURRO", "MENTIROSO", que faço parte da "MÍDIA GOLPISTA E ALIENADORA", e os leitores do blog podem ser chamados novamente de "ABESTADOS", "IMBECÍS-INCAUTOS" e "BURROS", como ocorreu em um dos comentários sobre o texto O "efeito Lula" ... mas como quem está na chuva é para se molhar, mais uma vez dou minha cara a bater.

A Lei da Anistia foi um dos principais instrumentos da redemocratização do país, e não foi uma imposição dos militares, mas sim fruto de uma negociação entre estes e os perseguidos pelo governo da época. Isso foi bem ressaltado pelo ex-Ministro Eros Grau, que sofreu perseguições e foi torturado durante o regime ditatorial, ao atuar como relator de uma ação movida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados Brasil (OAB) que buscava contestar o alcance da anistia concedida pela lei:

(...) Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). (...)

Inclusive a OAB, de modo que nestes autos encontramos a OAB de hoje contra a OAB de ontem. É inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se o tivessem feito, todos, de modo ilegítimo. Como se tivessem sido cúmplices dos outros. Para como que menosprezá-la, diz-se que o acordo que resultou na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo em nome dos subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que de reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que fosse sem violência, estávamos fartos de violência. (...)

Eros Grau votou pela improcedência da ação (para surpresa de muitos), e devo dizer que concordo com ele. Por mais que para muitos soe como tudo acabou em pizza, foi graças a este ato que muitos exilados voltaram ao país, que foi possível a realização do movimento Diretas Já de forma pacífica, e até mesmo a eleição de Tancredo Neves à presidência da República.

Sim, o preço é não haver condenação para os infratores da lei e dos direitos humanos, mas isso foi para ambos os lados. Podemos até dizer que tenha sido um preço alto a se pagar, mas assim como expôs Eros Grau, fico me perguntado se o preço não teria sido maior se a democracia tivesse sido conquistada na base da violência e revolta armada. Quantas pessoas a mais morreriam, sumiriam ou seriam torturadas?

De qualquer forma existem situações que ficaram sem solução, como por exemplo, e os que sumiram durante do regime militar? O que ocorreu com eles?

Pois bem, o Governo Federal instituiu a Comissão da Verdade, que passará os próximos dois anos apurando violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar.

Uma coisa devo dizer: Dilma tem muito mais coragem que seu antecessor. Isto é algo que vinha sendo falado desde que Lula assumiu a presidência, mas ele nunca teve peito para colocar em prática.

Diante de toda a situação histórica e jurídica envolvendo a Lei da Anistia, confesso que não vejo com bons olhos a ideia da Comissão.

Primeiro problema: foi instituída apenas para investigar as violações cometidas pelos agentes do Estado. Com o devido respeito aos defensores do ato, mas acho que é um tremendo absurdo. Se é para haver apuração, que seja geral, sob pena de parcialidade do resultado.

Claro que a Comissão da Verdade somente poderá apurar os fatos e não terá nenhum poder de punição (primeiro por não ter caráter jurisdicional, segundo pela previsão da Lei da Anistia), mas neste caso a história mostra que ocorreram violações aos direitos humanos dos dois lados. Isso não pode ser esquecido ou se fazer de conta que não existiu.

Segundo problema: o que vai ser investigado e se isso será exposto. Como já colocado, a Comissão da Verdade não tem caráter punitivo, apenas investigativo, mas a exposição de fatos e pessoas poderá causar um julgamento público, como tem ocorrido em alguns casos. Assim, de que adianta uma lei que dá o perdão? E mais, por que “se aceita” que o julgamento público seja apenas de um lado?

Nada justifica as torturas e mortes durante o regime militar, sejam elas causadas pelos agentes públicos ou pelos contrários ao regime imposto, mas se a sociedade (aqui composta de militares e opositores) entendeu pela anistia de tais situações em prol da redemocratização do país, não pode agora o Governo expor uma parte dos anistiados para que haja julgamento público. É praticamente jogar as pessoas ao apedrejamento e lavar as mãos para isso.

Isso me faz crer que a Comissão da Verdade tem sim um caráter vingativo. Se o Governo está de mãos atadas para punir os militares que agiram no regime ditatorial, vai buscar o julgamento de forma pública.

Acredito sim que aqueles que sofreram perdas de familiares e amigos devem saber o paradeiro do ente querido. Essa deveria ser a principal meta da dita comissão, mas como se vê a ideia é mais ampla.

Temos que ter cuidado com as consequências que deverão vir a partir das investigações, pois já estamos tendo uma demonstração do que é possível ocorrer.

Deixo claro que acho salutar a busca da verdade, mas que seja para ambos os lados e que não haja exposição pública dos infratores. Se não for assim, se estará desrespeitando uma previsão legal que foi negociada pela sociedade.

Não podemos esquecer os fatos ocorridos durante o regime militar, mas também não podemos agora fazer caça às bruxas, sob pena de jogar no lixo uma norma que abriu as portas para a democracia no país.

Cito aqui um texto Dr. Ives Gandra da Silva Martins, em artigo recentemente publicado no jornal O Estado de São Paulo (26/05/12), que retrata bem diversos problemas na Comissão da Verdade e sua forma de atuação: 

A Comissão da Verdade e a verdade histórica 

Depois de muita expectativa – e com grande exposição na mídia -, foi constituída comissão para “resgatar a verdade histórica” de um período de 42 anos da vida política nacional, objetivando, fundamentalmente, detectar os casos de tortura na luta pelo poder. A História é contada por historiadores, que têm postura imparcial ao examinar os fatos que a conformaram, visto serem cientistas dedicados à análise do passado. Os que ambicionam o poder fazem a História, mas, por dela participarem, não têm a imparcialidade necessária para a reproduzir.

A Comissão da Verdade não conta, em sua composição, com nenhum historiador capaz de apurar, com rigor científico, a verdade histórica da tortura no Brasil, de 1946 a 1988. O primeiro reparo, portanto, que faço à sua constituição é o de que “não historiadores” foram encarregados de contar a História daquele período. Conheço seis dos sete membros da comissão e tenho por eles grande respeito, além de amizade com alguns. Não possuem, no entanto, a qualificação científica para o trabalho que lhes foi atribuído. 

O segundo reparo é que estiveram envolvidos com os acontecimentos daquele período. Em debate com o ex-deputado Ayrton Soares, em programa de Mônica Waldvogel, perguntou-me o amigo e colega – que defendia a constituição de comissão para essa finalidade, enquanto eu não via necessidade de sua criação – se eu participaria dela, se fosse convidado. Disse-lhe que não, pois, apesar de ser membro da Academia Paulista de História, estive envolvido nos acontecimentos. Inicialmente, dando apoio ao movimento para evitar a ameaça de ditadura e garantir as eleições de 1965, como, de resto, fizeram todos os jornais da época. No dia 2 de setembro de 1964, o jornal O Globo, em seu editorial, escrevia: “Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial à democracia, a lei, a ordem”.

A partir do Ato Institucional n.º 2/65, que suprimiu as eleições daquele ano, opus-me a ele, o ponto de, em 13 de fevereiro de 1969, ter sido pedido o confisco de meus bens e a abertura de um inquérito policial militar sobre minhas atividades de advogado, por defender empresa que não agradava ao regime. O mais curioso é que continuei como advogado, tendo derrubado a prisão de seus diretores, no Supremo Tribunal Federal, em 1971, por 5 a 3, à época em que os magistrados não se curvavam ao poder da mídia ou dos detentores do poder. Embora arquivados os dois pedidos, o fato de ter sido anunciada a abertura do processo contra mim, pelos jornais, com grande sensacionalismo, tive minha advocacia abalada por alguns anos. Nem por isso pedi indenizações milionárias ao governo atual, nem pedirei. À época apoiei a Anistia Internacional, tendo entrado para seus quadros sob a presidência de Rodolfo Konder, e fui conselheiro da OAB-SP por seis anos, antes da redemocratização. À evidência, faltar-me-ia, por mais que quisesse ser imparcial, a tranquilidade necessária para examinar os fatos com isenção. Envolvidos da época não podem adotar uma postura neutra ao contar os fatos históricos de que participaram.

O terceiro reparo é que alguns de seus membros pretendem que a verdade seja seletiva. Tortura praticada por guerrilheiro não será apurada, só a que tenha sido levada a efeito por militares e agentes públicos. O que vale dizer: lança-se a imparcialidade para o espaço, dando a impressão que guerrilheiro, quando tortura, pratica um ato sagrado; já os militares, um ato demoníaco. Bem disse o vice-presidente da República, professor Michel Temer, em São Paulo, no último dia 17, que os trabalhos da comissão devem ser abrangentes e procurar descobrir os torturadores dos dois lados.

O quarto reparo é que muitos guerrilheiros foram treinados em Cuba, pela mais sangrenta ditadura das Américas no século 20. Assassinaram-se, sem direito a defesa, nos paredões de Fidel Castro mais pessoas do que na ditadura de Pinochet, em que também houve muitas mortes sem julgamento adequado. Um bom número de guerrilheiros não queria, pois, a democracia, mas uma ditadura à moda cubana. Radicalizaram o processo de redemocratização a tal ponto que a imprensa passou a ser permanentemente censurada. Estou convencido de que esse radicalismo e os ideais da ditadura cubana que o inspiraram apenas atrasaram o processo de redemocratização e dificultaram uma solução acordada e não sangrenta.

O quinto aspecto que me parece importante destacar é que, a meu ver, a redemocratização se deveu ao trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que se tornou a voz e os pulmões da sociedade. Liderada por um brasileiro da grandeza de Raimundo Faoro, conseguiu, inclusive, em pleno período de exceção, com apoio dos próprios guerrilheiros, aprovar a Lei da Anistia (1979), permitindo, pois, que todos voltassem à atividade política. Substituindo as armas de fogo pela arma da palavra, a OAB deu início à verdadeira redemocratização do País.

Por fim, num país que deveria olhar para o futuro, em vez de remoer o passado – tese que levou guerrilheiros, advogados e o próprio governo militar a acordarem a Lei da Anistia, colocando uma pedra sobre aqueles tempos conturbados -, a comissão é inoportuna. Parafraseando Vicente Rao, esta volta ao pretérito parece ser contra o “sistema da natureza, pois para o tempo que já se foi, fará reviver as nossas dores, sem nos restituir nossas esperanças” (O Direito e a Vida dos Direitos, Ed. Revista dos Tribunais, 2004, página 389).

Estou convencido de que tudo o que ocorreu no passado será, no futuro, contado com imparcialidade, não pela comissão, mas por historiadores, que saberão conformar para a posteridade a verdade histórica de uma época.
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Fica autorizada a reprodução integral deste post, desde que citada a fonte conforme texto a seguir:
BRANDALISE, André Luiz de Oliveira, A Comissão da Verdade e suas consequências, publicado em 05/06/12 no blog “André Brandalise” - http://alobrandalise.blogspot.com/2012/06/comissao-da-verdade-e-suas.html

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